Marcio Doctors, 1984
[texto para a exposição individual de Ascânio MMM no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em setembro de 1984]
Como falar daquilo que constitui-se a partir do silêncio? Esta sempre foi a dificuldade e o encantamento da escultura. Sua presença inerte nos revela o outro lado da palavra: o silêncio. No confronto com o movente, a escultura alia-se à dureza da matéria como se quisesse dar consistência – resistência – a precipitação incontida e fugaz da vida. Tal qual um esforço, não se acanha diante da estrutura esquelética dos corpos, quer mais, quer preenche-los: dar-lhes forma, peso, volume. Traz em si o mistério da química,
que transforma elementos simples (quase invisíveis e impalpáveis) em matéria presente, visível e palpável. Esta presença da matéria, que é intrínseca ao ato de esculpir e à própria escultura, nos remete ao anterior da linguagem articulada, quando nosso primeiro contato com o mundo exterior é dado pela resistência física com que o mundo nos recebe. Da interposição da resistência entre o indivíduo e sua exterioridade nasce a consciência limítrofe do corpo. Abre-se, então, uma primeira fenda: experimentamos a impossibilidade de diluir-se no mundo. No lugar do esquecimento – do abandono do corpo à sua inconsciência – temos agora a memória – este estado de cristalização do que sobra do esquecimento.
A memória é fundada junto à essa cisão e traz consigo a marca da dureza da matéria; como se fosse cravada por ela. Como se trouxesse na sua constituição resíduos táteis
que faz com que ambicionemos o concreto: aquilo que nos separa e nos cola ao mundo. A escultura trata deste momento. Deste lado mudo da vida, quando, anteriormente a palavra e sua frenética busca de acompanhar estancando o deslocar perene do tempo, temos uma introjeção radical da especificidade humana: esse caminho sem volta, cujo percurso é traçado a partir de um deslocamento progressivo do “real” e do “concreto” em direção a criação de “mais real” e “mais concreto”. A concretude, então – apontando a um só tempo à origem e à utopia - fica como referência, como pedra
de toque, sobre a qual a “ilusão humana” trabalhará. É sobre ela que lançaremos as marcas do humano – as marcas da alegria.
O ato escultórico, no eu sentido mais tradicional, é fundado a partir dessa intuição do concreto que nos referimos acima. Só aqueles que tem amor pela dureza da matéria conseguem descobrir elementos plásticos nela a ponto de transforma-la em expressividade. Ascânio é um desses artistas. De suas lembranças de infância, descobrimos o prazer pelo cheiro das carpintarias. De seus comentários sobre a madeira descobrimos um olhar-tátil que desliza aveludadamente sobre seus veios. Ascânio gosta do material que optou para seu trabalho e não esconde isso. Suas descobertas plásticas nascem exatamente da intimidade que cultiva com a madeira. É no próprio processo do fazer que vai reinventando o encaminhar e o desenvolvimento da ideia original da obra. Como se fosse esgotando, através de um processo de múltiplos desdobramentos, as infinitas possibilidades do material.
O que Ascânio nos oferece neste momento é a oportunidade de compartilharmos com ele de suas novas descobertas. Aqueles que, acostumados a seu trabalho anterior, esperavam as já consagradas estruturas de ripas pintadas de branco, hão de se surpreender diante da nudez de suas placas e esculturas atuais. É como se o artista nos quisesse oferecer o outro lado de seu trabalho; a organicidade que se escondia por detrás daquela fina película de branco – seu avesso. Mas sabe também que não basta somente despir suas estruturas para revelar o ouro que se calava. É necessário sensibilidade para ousar os novos caminhos que a madeira, agora, na sua cor natural, lhe aponta. Essa exposição é o resultado dessa opção pelo material.
A primeira surpresa vem de suas placas, exatamente o laboratório aonde foram geradas as mudanças. Contrariamente às que foram exibidas na Galeria Paulo Klabin em 1981, as que estão aqui reunidas explodem o limite d tradicional quadrado espalhando-se alegremente pela parede. Como se houvesse uma consagração do material. É a madeira que grita, deixando não só passar sua cor, mas uma nova forma que se adapta à fantástica riqueza dos jogos visuais que a combinação de seus veios permite.
Anteriormente, como nos mostra Ronaldo do Rego Macedo no catálogo da referida exposição, Ascânio manifestava em suas placas uma preocupação que poderíamos denominar como arquitetônica. Havia como que o desejo de entabular um diálogo entre a obra e a parede, que era revelado através do relevo e seu jogo sutil de luz e sombra. Nas placas aqui expostas há uma preocupação que ousaríamos localizar como sendo retiniana; como se o artista radicalizasse o privilégio da visão. Frederico Morais – ou catálogo da exposição realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1976 – já denuncia este caminho quando, ao compará-lo a Lygia Clark e Mary Vieira, afirma: “Diferentemente das duas escultoras, que solicitam uma participação tátil do espectador, Ascânio, mesmo não excluindo o toque da mão, que vez por outra escorrega nas escadarias de seus relevos e esculturas, privilegia a visão”.
Mantendo-se coerente ao novo caminho optado, não tratando mais da questão da luz e da sombra, o artista dispensa o branco para que a madeira possa expor toda sua riqueza e variedade. Não há mais nada sombrio. É como se tudo estivesse iluminado através da evidência que o desnudamento da cor permite. Das mãos hábeis do artista, as formas ensaiam nova coreografia cujos movimentos são determinados pela própria organicidade do material. O tom agora é dado pelo jogo visual dos veios que nos saturam a retina, ora revelando profundidades, ora projetando-se contrariamente no espaço.
O que podemos surpreender nas novas placas é que Ascânio interrompe o diálogo dos planos, fazendo interceder entre a parede e o relevo a suavidade que suas esculturas curvilíneas desenham no espaço. E é aí que ele nos oferece uma segunda surpresa. Se por um lado parece existir uma espécie de continuidade transposta das esculturas para o plano, o outro, o inverso, também parece verdadeiro. As atuais esculturas sugerem o comedimento anguloso dos antigos relevos. Mas é mister que façamos uma diferença. Não basta lermos sua obra de dentro desta transposição linear que está sendo induzida. Seria muito empobrecedor. Ficaria distante da riqueza de qualquer trajetória artística, que é marcada pela sinuosidade que não teme explorar caminhos já antes trilhados, sem necessariamente repeti-los. Se esta espécie de recorrência aparentemente se dá é porque mais de uma vez o artista revela-se coerente com o novo rumo que imprime à sua criação. Ao invés de trabalhar com o jogo de superfícies da ripa explorando as possibilidades de luz e sombra que a estrutura em escadaria permite, trabalha com a noção de massa compacta, revelando, assim, outro aspecto da opção pelo material.
As ripas não mais dispõem-se como se estivessem ensaiando um movimento no espaço, como se fossem luz difusa, ao contrário, aglutinante como se fossem matéria compacta. Se nas placas explora o aspecto epidérmico da madeira, nas esculturas remete-se a sua origem de bloco (de tronco). É quase que um trabalho de reconstrução, que pode ser observado no desenho de tabuleiro que fica aparente nas laterais de algumas obras. As ripas não mais espalham-se em leque em torno de um eixo, mas fecham-se para juntas formarem um grande eixo sólido e compacto. Neste momento o artista troca a suavidade visual pela presença marcante de uma estrutura sólida (compacta). Sua escultura adquire a monumentalidade abafada de arquitetura. No lugar das formas anteriores, que desdobravam-se no espaço quase em voo, temos agora formas que, como estacas, buscam assentar-se no solo.
O que Ascânio faz é uma espécie de inversão de seu trabalho; de sua trajetória já consagrada. É isto não parece intimidá-lo, ao contrário, é instigante. Aceita os novos desafios que a ripa lhe impõe e passa a travar um combate que dispensa suas fórmulas e soluções passadas e amplamente conhecidas. Não se acomoda e impõe-se como artista que é. Vai buscar em algumas experiências anteriores e dispersas o novo sentido que imprime à sua obra. Revelando, assim, a verdadeira dimensão do fazer artístico que é a incansável busca da construção de sentido. Nesses momentos cada vez mais fugazes que vivemos, Ascânio insiste em costurar a permanência através da amarração que sua obra vem desenhando ao longo dos anos. Ao mesmo tempo nos presenteia com um momento de mutação em sua origem e, como toda mutação, só seu agente poderá revelar como o tempo todo seu desdobramento.