O cristal /
Poética da razão, cap. 1
Paulo Herkenhoff, 2012
Em quase cinco décadas de produção, Ascânio Maria Martins Monteiro construiu uma minuciosa obra - transparente em sua poética e firme em sua lógica construtiva - que lhe garante um lugar histórico na trajetória da abstração geométrica da América Latina. Esta foi sua práxis exclusiva. Ascânio nunca fez uma obra figurativa. Desde seu primeiro trabalho em 1964, o artista manteve de modo consistente a opção construtiva, mesmo com o contínuo processo de invenção de problemas plásticos e experimentação de materiais. O lugar de Ascânio no projeto de arte concreta, os aspectos culturais de sua origem portuguesa, sua formação, o esforço de construção da linguagem e de seus signos materiais, as proposições fenomenológicas e simbólicas, a participação no processo histórico da arte brasileira, sobretudo na Geração MAM, o âmbito de sua produção, seu programa estético, a poética e o sentido da obra, a vontade construtiva e o viés arquitetônico da escultura vinculado à questão social da habitação, o substrato dialético e político da forma e o inconsciente matemático - todas essas são questões que surpreendem o historiador. Compreender a dimensão dialética da produção de Ascânio é de natureza similar à responsabilidade de todo “psicólogo do espírito científico” – uma acepção de Gaston Bachelard –, que deve viver o estranho desdobramento da personalidade geométrica que se efetuou ao longo do último século e meio da cultura matemática.1 No entanto, diferentemente do matemático, Ascânio MMM não reprime a intuição (nem a sublimação da experiência). Seu desafio bachelardiano foi sempre realizar a conversão da realidade racional em poética experimental.
Nascido em Portugal em 1941, Ascânio emigrou para o Brasil em 1959.
Passei uma infância maravilhosa. Ainda hoje, quando vou a Fão, gosto de passear pelos lugares e ruas da minha infância. Gosto de chegar a Fão e passear como anônimo. Para mim, a liberdade era vagabundear pelo cais, pelo pinhal, pelas dunas e pela praia, especialmente no verão. Foi andando pelo pinhal, olhando aquelas casas de arquitetura moderna - um dia até entrei numa delas -, que eu construí o sonho de ser arquiteto.2
A gênese particular de Ascânio está ancorada em sua origem portuguesa e no contexto cultural brasileiro, mais especificamente o do Rio de Janeiro, cidade fecundada pela revolução neoconcretista e seus desdobramentos. Mas seu trabalho também se coloca diante dos horizontes internacionais da escultura – sobretudo a anglo-saxônica do pós-guerra –, e se situa entre as respostas da cultura brasileira ao processo político posterior ao golpe de 1964, através das relações entre arte e sociedade e do modo como arquitetura e urbanismo penetram essa discussão – daí o seu próprio discurso sobre a dimensão tridimensional. Nesse tempo, assentava-se entre os artistas de seu grupo a posição de que não existia neutralidade em arte.
O sistema de valores da obra de Ascânio solicita que se examine sua gênese, até aqui insuficiente ou mesmo equivocadamente explorada.
Uma produção longa e uma agenda complexa demandam a arregimentação de um aparato metodológico que dê conta tanto do aspecto multidisciplinar da obra quanto da consistência de discurso do artista – pois o todo arquitetônico da escultura está sempre calçado na unidade resultante da lógica do número na constituição do sentido social e político do discurso. A obra de Ascânio é analisada aqui em capítulos estabelecidos segundo parâmetros de linguagem, desde a sua primeira escultura guardada até os problemas atuais que envolvem seu pensamento plástico. “O livro aborda várias passagens da minha carreira: Fão, Escola de Belas Artes, Faculdade de Arquitetura, Geração MAM, etc. Mas há um detalhe na minha carreira que foi muito importante: a Ana”,3 ressalta o artista.
Ascânio e Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro se conheceram em 1972 e se casaram em 1974. Ela é doutora em Educação pela PUC-Rio e diretora da Faculdade de Educação da UFRJ. Acompanhar ativamente o processo de Ascânio foi estar perto da produção - desde a etapa de conceituação até a de execução -, mas também abrir a casa para receber artistas, como Raymundo Colares, que viveu alguns meses na residência do casal. Entre inúmeros títulos, ela é autora de Professores de história: entre saberes e práticas.4 O livro, resultado de sua pesquisa para o doutorado, tem a excelência avalizada por Circe Fernandes Bittencourt, que dele afirma o seguinte:
(...) o engajamento profissional, a vivência e o compromisso acadêmico da autora tornaram a pesquisa uma obra maior e das mais complexas quanto ao tratamento das relações entre a teia de saberes desencadeados no cotidiano escolar, na busca de entender como o ofício do professor de história se realiza, como efetivamente determinados conhecimentos históricos são produzidos no processo do ensinar e do aprender no interior das salas de aula.5
Isso é semelhante ao que se passa na relação do crítico ou do historiador com o processo de conhecimento no ateliê do artista. Com Ana Monteiro, discutimos de que forma a escrita sobre a arte, assim como a educação, é processo cotidiano de mobilizações de saberes.
Uma dificuldade para a elaboração do presente ensaio retrospectivo foi a maneira econômica e retraída com que Ascânio colocou à disposição do autor documentos pessoais e mesmo suas obras históricas, sobretudo das décadas de 1960 e 1970. O exame de sua produção e as discussões sobre sua gênese e trajetória já estavam em andamento quando Ascânio, provocado, ousou fazer as primeiras revelações sobre sua história com a escultura - um território recalcado porque ele acreditava que a autonomia da arte exigiria que não revelasse sua agenda política. Outra dificuldade superada ao longo dos quatro anos de elaboração deste ensaio foi a tendência do artista a não expor sua discordância com relação a certas interpretações de sua obra ou até mesmo comparações com as quais não concordasse inteiramente. De modo elegante, Ascânio julgava que aceitar toda interpretação seria uma forma de respeito intelectual a seus interlocutores, pois, dizia ele, não desejava interferir no discurso alheio.6 Rompidos todos esses parâmetros e constrangimentos pessoais, a historiografia pôde abrir novas fronteiras de entendimento conceitual do trabalho do escultor, corrigindo conclusões mais mecanicistas e tendo forçosamente que buscar novos parâmetros metodológicos de análise. Ana Monteiro e Ascânio sempre mantiveram discussões sobre a coerência dos procedimentos escultóricos, sua relação com a sociedade e o imenso desafio de um levantamento historiográfico à altura da obra de Ascânio MMM.
Quem não atentar para a relação entre escultura, arquitetura, matemática e filosofia na produção de Ascânio permanecerá retido exclusivamente na questão da forma. No exercício de um olhar de tal modo formalista, o crítico poderá reduzir a produção do escultor à forma, projetando sobre a obra o que é limitação do seu próprio conhecimento e incapacidade de leitura da dimensão ontológica da escultura. Ana Monteiro, a historiadora e a professora universitária, foi uma voz muito firme, ainda que discreta, na defesa do tempo necessário ao processo epistemológico requerido por um texto com a ambição do presente. Ela compreende o sentido das fronteiras entre o campo da arte e o da história. Sabe também que poucos escultores geométricos brasileiros têm uma historiografia devidamente abrangente e que o próprio Ascânio construiu uma obra densa e extensa, e essa obra precisa ser explorada num plano retrospectivo que lhe defina com mais vigor o lugar histórico.
A crítica antiformalista, e que não dispensa leituras das correlações entre significante e significado, será surpreendida pela sintaxe complexa da obra de Ascânio. Antes, no entanto, deveria compreender a dimensão matemática da escultura para partir do contato real com a obra mesma, na dimensão husserliana do fenômeno estético. Cumpre, então, desvelar o viés da arquitetura e do urbanismo - sua teoria, história e prática contemporânea, inclusive em sua dimensão coletiva - para deslocar a arqueologia da construção tridimensional de Ascânio ao campo do espaço social. Com sutileza e discrição, sua escultura nunca foi preservada da contaminação pelas condições concretas da prática social da arquitetura no Brasil. A abordagem da obra de Ascânio implica compreender a visão dialética da sociedade pelo artista e o tecido cultural e político em que sua escultura se inscreve criticamente.
Uma aproximação materialista do signo compreende tanto sua própria natureza comunicacional na construção do discurso como também as condições materiais e históricas da produção da obra. A relação da escultura com a arquitetura realizou uma hipótese de discurso simultaneamente racional e poético. Na abordagem da história, a iconologia auxilia; não como padrão esteticista, mas como a estética, fundada na matemática e na física, do eixo arquitetura-obra de Ascânio.
O arco teórico da linguística, que se abre desde o Curso de linguística geral de Ferdinand Sausurre, afeta a leitura da obra de Ascânio. A harmonia visual da sua escultura permite a aproximação linguística através do conceito de “arquitetônica” de Mikhail Bakhtin, da dimensão conceitualista da cor em Wittgenstein ou da teoria do livro de Maurice Blanchot, por exemplo, pois a própria obra de Ascânio é um complexo linguístico desafiador. Talvez a falta essencial em torno da qual se desenrole a obra de Ascânio seja a questão da moradia, isto é, o desabrigo. O aforismo de Heidegger que fala da linguagem como a morada do ser pode aqui ser adequadamente mencionado. A escultura de Ascânio sempre se organiza como uma estimulante oferta de experiência da percepção. Essa generosidade com o sujeito da percepção está colada à fenomenologia da percepção - base do neoconcretismo - em sua relação com a filosofia de Merleau-Ponty.7 Lacan nunca abandonou Merleau-Ponty. A psicanálise, sobretudo no eixo Freud-Lacan, permite explorar o inconsciente matemático-arquitetônico, dimensão do inconsciente político discutido por Fredric Jameson e do inconsciente ótico de Rosalind Krauss. No entanto, noções psicanalíticas como a de vazio do sujeito e a de organização do inconsciente como cadeia linguística contribuem para compreendermos certos movimentos da obra de Ascânio. As reflexões de Gilles Deleuze sobre o sentido dos espaços lisos, estriados e dobrados, ou noções como a heterotopia em Michel Foucault, podem ser expandidas para a análise da escultura de Ascânio como arquitetura inquietante.
A discussão sobre a formação do escultor é iluminada pela adolescência em Portugal, antes de sua emigração para o Brasil. Levado pela lavadeira de sua família, Ascânio viveu a epifania de visitar uma casa projetada fora dos padrões estéticos da arquitetura oficial salazarista. O jovem descobria então o espaço moderno e no mesmo instante teve consciência de sua vontade de arquitetura. Seu insight foi empolgar-se com o imaginário do espaço.8 A formação do escultor se deveu ainda à passagem jubilosa − mesmo se não isenta de críticas − por etapas heterogêneas na Escola Nacional de Belas Artes (Enba, 1963-1964) e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU, 1965-1969), ambas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ocorridas no período da ditadura militar. O olhar de Ascânio vivenciava traumas e aberturas, até hoje irrevelados, que se consolidavam entre dois choques.
Ao ingressar na Enba, em 1963, pela primeira vez entrei num museu: o MNBA (Museu Nacional de Belas Artes). Vi os premiados do Snam (Salão Nacional de Arte Moderna), que me chamaram a atenção. Isso foi a primeiro choque de deslumbramento com a Arte. É isto que eu quero, pensei. Ainda menino na minha terra natal, tive outro choque parecido: quando pela primeira vez entrei numa casa de arquitetura moderna.9
Ascânio não dissocia da Enba a experiência de descobrir a arte neoconcreta nas salas do MNBA, que divide o mesmo prédio com a escola.
A presente análise da obra de Ascânio acentuará mais o fato de que certo “projeto construtivo latino-americano na arte”10 ainda espera pela definição de marcos históricos que - sem deturpar os fatos do período - situem vários artistas numa segunda etapa, em vez de usar o critério cronológico mecânico de geração, que é inadequado ao processo. Sem a definição desses marcos históricos continuará havendo muita confusão, fato que interessa ao mercado apenas, e não à história. Evidentemente que nos fundamentos mais remotos estão, entre os modernistas, os artistas que adotaram a geometria ou a linguagem cubista ou pós-cubista - pintores e escultores como Diego Rivera, Vicente do Rego Monteiro, Victor Brecheret, Tarsila do Amaral, Joaquín Torres García, Emilio Pettorutti e Curatella Manes, a portuguesa Maria Helena Vieira da Silva, que viveu no Rio de Janeiro entre 1940 e 1947, ou mesmo, mais anteriormente, o brasileiro Belmiro de Almeida, com eventuais obras geométricas realizadas entre 1908 e 1921. No entanto, a primeira geração a que se chama alternadamente de construtiva, concreta, concretista ou geométrica encontra marcos históricos em datas diferenciadas nos diversos países. O vigor de Ascânio sempre decorreu da oscilação entre a lógica da matemática e a emoção estética da forma, o que aponta a afinidade de certas esculturas com a tradição latino-americana da “geometria sensível”.
A trajetória política e intelectual de Ascânio inclui a firmeza na decisão construtiva na década de 1960. Lauro Cavalcanti percebeu que “Ascânio é um artista cuja obra reúne várias influências e questões centrais na arte brasileira dos últimos cinquenta anos”.11 Poderíamos entendê-lo assim também em relação à América Latina. A consistência da produção de Ascânio suscita inúmeros debates historiográficos novos ou irresolutos, tais como o modo de ocorrência de uma segunda geração construtiva no Brasil e na América Latina, ao lado de um César Paternosto, por exemplo. A abstração geométrica em países marcados pela identificação com o surrealismo e o realismo mágico, como o México e Cuba, teve uma produção irrisória. No plano dos artistas isolados atuantes em países sem tradição construtiva sólida estão Mathias Goeritz, no México, Luis Martínez Pedro, em Cuba, ou Carmen Herrera, em Porto Rico; com exceção do primeiro, os demais se encontram até aqui em posição periférica com relação à história latino-americana. Em termos latino-americanos, um divisor de águas foi a antológica exposição konkrete kunst - organizada em 1960 por Max Bill na Helmhaus, em Zurique -, que incluiu dezenas de latino-americanos e quase vinte brasileiros. Assim, na história da arte brasileira do século XX, a produção de Ascânio deve ser situada no contexto de duas gerações. É preciso entendê-lo em sua geração cronológica, surgida no final da década de 1960 em torno do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - processo capital das vanguardas brasileiras. E, simultaneamente, o escultor se inscreve no novo ciclo histórico de artistas construtivos, ao qual pertence, surgidos a partir do neoconcretismo, em 1959, e da “Teoria do não objeto”.
Além da produção concreta ocidental do pós-guerra, Ascânio também estudou os movimentos construtivos russos, inclusive o uso da madeira nas obras de
El Lissitzky e de Rodchenko. Seu arsenal de referências atravessa o desenvolvimento das linguagens abstrato-geométricas no plano internacional mais amplo, passa pelo Grupo Zero, pelo minimalismo e por escultores isolados. Passa também,
especificamente, pelos relevos brancos de artistas singulares como Jean Arp, Hélio Oiticica, Victor Pasmore, Günther Uecker, Luis Tomasello e o Jan Schoonhoven do final da década de 1950, com cuja obra teve uma interlocução sem atravessadores brasileiros. Tampouco teve intermediários do Rio de Janeiro. A história de Ascânio indica que sua matriz ou está nos neoconcretos ou na arte internacional. Alguns brasileiros, inclusive o próprio Ascânio, são herdeiros coevos e simultâneos daqueles valores visuais que inquietaram a arte europeia.12
Ascânio não tem registro de outra forma de fazer arte que não seja a abstração geométrica.
O emprego da madeira pede para que se compreenda a identificação intelectual de Ascânio com a escultura de Carl Andre, mas que a natureza da produção do primeiro não se confunda com a ótica minimalista. As diferenças entre a obra de Ascânio e a escultura em metal de Anthony Caro e Kenneth Martin esclarecem que o emprego da madeira e o inconsciente arquitetônico, com sua natureza de sociabilidade, garantiram ao artista brasileiro a lógica modular ajustada à mecânica que o singulariza na cena internacional. O formalismo é sempre uma armadilha que desvia o olhar comparativo desatento para equívocos historiográficos. A vontade construtiva de Ascânio está constituída também pelo imaginário da escultura e por sua inscrição não apenas na história da arte brasileira como na história da arte latino-americana e internacional, com análises de autores que vão de Albert Elsen e Sidney Geist a Margit Rowell, Yve-Alain Bois e Rosalind Krauss.
A fortuna crítica sobre a obra de Ascânio abrange os críticos mais atuantes na imprensa carioca do final da década de 1960, como Francisco Bittencourt, Roberto Pontual, Jayme Maurício e Walmir Ayala. Alinhado às ideias de Henri Focillon, Mário Barata acentuou-lhe a “elegância ascética” e “uma vida das formas” que se insinua fortemente.13 Citado ao longo deste ensaio, Frederico Morais foi, historicamente, quem esteve mais próximo da trajetória de Ascânio.14 Desde então, juntaram-se à lista nomes como Lygia Pape, Antonio Manuel, Aracy Amaral, Wilson Coutinho, Luiz Camilo Osório, Fernando Cocchiarale, Lauro Cavalcanti, Marcio Doctors, Paulo Sergio Duarte e outros. Em Portugal, Alexandre Pomar e João Pinharanda também escreveram sobre a obra de Ascânio, com a demonstração de uma pauta distinta da crítica brasileira.
O paradoxo dos formalistas com relação à obra de Ascânio é que negam a hipótese de significação mais complexa e, além disso, raciocinam sem perspectiva histórica. Sendo-lhes suficiente a própria opinião, dispensam o conhecimento da história da obra. Já os não formalistas, por preconceito contra a forma geométrica, não sabem do substrato de significados em camadas mais profundas de sua escultura. Com essa paradoxal distância entre dois polos, a obra de Ascânio termina por expor as idiossincrasias de parcelas da crítica brasileira, sua subalternidade ao mercado e seu assumido desdém pelo rigor historiográfico. Essas duas posições levam à conclusão de que a crítica precisa testar sempre as suas hipóteses de operação por estereótipos.
Dois artistas, Ascânio e Ronaldo do Rego Macedo, desenvolveram juntos dois programas curatoriais no Rio de Janeiro durante uma década. Iniciaram na sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB, 1981-1982), e depois na Galeria do Centro Empresarial Rio (1983-1989), na Praia de Botafogo. Essa obra curatorial foi pioneira na exposição de alguns mestres do projeto construtivo brasileiro, e dava continuidade a duas mostras antológicas realizadas no Rio na década anterior. Na Galeria do IAB do Rio de Janeiro, eles promoveram mostras de Franz Weissmann, Ione Saldanha, Joaquim Tenreiro, Abraham Palatnik, em 1981, e de Maria Leontina, em 1982. Esse programa, sempre acompanhado de catálogos bem executados, tinha o objetivo de integrar as artes plásticas nos debates sobre arquitetura e urbanismo e formar o olhar dos arquitetos, lapidando-o de modo mais sofisticado para a cultura visual moderna.
Na Galeria do Centro Empresarial Rio, os dois curadores organizaram cerca de sessenta exposições - entre elas um programa de arte abstrato-geométrica, com Aluisio Carvão, Rubem Ludolf, Lygia Pape, Joaquim Tenreiro, Jackson Ribeiro, e a mostra Abstração Geométrica na Coleção Gilberto Chateaubriand, com Amílcar Castro, Ione Saldanha, Ivan Serpa, Lothar Charoux, Maria Leontina, Mário Silésio, Mira Schendel e outros. Outra exposição significativa foi Expressão e conceito / Anos 70 na coleção Gilberto Chateaubriand, com Barrio, Carlos Zílio, Cildo Meireles, José Resende, Luiz Alphonsus, Milton Machado, Thereza Simões, Tunga, Waltercio Caldas, entre outros. O programa incluiu mostras individuais de artistas emergentes ou com pouca visibilidade - como João Modé, Sálvio Daré, Sandra Kogut, Cristina Canale, André Costa, Gonçalo Ivo, Jorge Barrão, Angelo Venosa, Daniel Senise e Katie Van Scherpenberg - e coletivas como Novos novos, com Adriana Varejão, Carla Guagliardi, Cristina Canale, Fernando Leite, Sandra Sartori e outros; Brasil hightech, com Eduardo Kac, Fernando Catta-Preta, Júlio Plaza, Mário Ramiro, entre outros; Novos novos 88, com Brígida Baltar, Chang Chai, Davy Cury, Eduardo Frota, Franklin Cassaro, Márcia X, Ricardo Maurício e outros; e Nova escultura gaúcha, com Elaine Tedesco, Gaudêncio Fidelis e José Francisco Alves. Então raras no Brasil, foram realizadas exposições de projetos de arquitetura, como Tendências da arquitetura portuguesa, com Álvaro Siza, Manuel Vicente, Tomás Taveira e outros. Essa consistência de programação sustentou o debate em torno das principais questões estéticas do período, inclusive o ressurgimento da pintura no Brasil. Trata-se de um programa exemplar e persistente de exposição da arte brasileira ao debate que nenhuma instituição no Rio de Janeiro excedeu naquele período.
Frequentemente, a “lógica matemática”15 prevalecia sobre a poética da forma no dito projeto construtivo brasileiro na arte, embora parecesse muito longe de atingir a precisão preconizada por Max Bill - a arte converteria o pensamento invisível, o abstrato se torna concreto, perceptível e apreensível pelos sentidos, criando “axiomas quase inimagináveis”.16 É justamente o confronto experimental com o inimaginável que está na raiz da poética dos módulos de Ascânio MMM. Em certos casos da experiência concretista brasileira, como o grupo Ruptura, é razoável pensar no inverso, em axiomas imagináveis, tal a subalternidade a duas ideias: o visibilismo de Konrad Fiedler e o pré-formismo do grupo de Theo van Doesburg. Em 1930, o “Manifesto da Arte concreta”, de van Doesburg, Hélion e outros, declara que “a obra deve ser inteiramente concebida no espírito antes de sua execução”.17 Em São Paulo, Waldemar Cordeiro espelha e refina essa posição ao reivindicar, no “Manifesto Ruptura” (1952), uma arte que opere como “um meio de conhecimento dedutível de conceitos, situando-a acima da opinião, exigindo para o seu juízo o conhecimento prévio”. A reivindicação do “Manifesto Ruptura” por uma transparência matemática da forma resvalou em alguns concretistas para o desenho pintado, a operação mecânica de leis da percepção nos termos da Gestalt e os efeitos ilusionísticos sedutores da Op arte - isto é, a pré-visualização se perde em previsibilidade. No caso de Ascânio, a matemática, ainda que determinante, estava a serviço de relações oriundas da linguagem da arquitetura, a partir da qual grande parte de sua produção se desenvolveu. Lapidar o cristal construtivo é organizar o módulo numa ordem para além da mecânica da percepção segundo a Gestalt e da utilidade para o monumento arquitetônico. Desde cedo, Ascânio rejeita os efeitos óticos mecanicistas em favor da fenomenologia da percepção. Na fresta entre esses dois limites, resplende o cristal, mas a noção de corpus solidum, mesmo se não descartada, deve, no entanto, dar lugar a um corpo em trânsito visual. Se a arquitetura é espaço, como definiu Mário Pedrosa, então tudo fica mais transparente, pois a escultura de Ascânio parece se colocar como tempo, espaço e fenômeno de percepção.
A observação atenta da lógica escultórica de Ascânio notará que a matemática sempre alimentou cogitações sobre a poética do Número em Ascânio. As reflexões filosóficas de Alain Badiou contribuem para que se elucidem os sentidos da poética do Número em Ascânio. Diferentemente de L. Brunschvigg em Les étapes de la philosophie mathématique, Badiou defende em O Número e os números a existência de uma segunda modernidade da matemática, que trata do infinito, do zero e dos problemas do Um.18, 19 A escultura promove passagens da tridimensionalidade dos módulos para a dimensão planar operada pela percepção de dois fenômenos: a matemática e a luz.
Qualquer que seja a etapa de sua trajetória, a escultura de Ascânio sempre se desenvolveu a partir de raízes na arquitetura, de cuja lógica, materiais, espaços e valores estéticos ela se alimenta. Portanto, para debater essa obra, uma metodologia historiográfica rigorosa deve, necessariamente, dialogar também com a teoria da arquitetura. Duas experiências de sua infância em Portugal devem ser aqui rememoradas: a Cangosta dos Godes, em Fão, e a casa de verão, em Ofir. O pensamento de Le Corbusier estimulou em várias instâncias, e de maneira ampla e profunda, a agenda da obra tridimensional de Ascânio. A noção da organicidade da arquitetura, a poética da sensualidade articulada à racionalidade, a modulação e o dimensionamento humano da arquitetura, como no caso do Modulor, são alguns valores de Le Corbusier admitidos na escultura de Ascânio. Alguns desenhos de 1969 parecem remeter aos volumes projetados por Marcel Breuer para o edifício do Whitney Museum of Art, inaugurado em 1966. Por outro lado, a força melódica do ritmo modular de certa escultura de Ascânio precede dialogicamente a arquitetura branca de Santiago Calatrava. O próprio Ascânio rejeita a ideia de que possa ter marcado o espanhol, pois acredita que sua obra não tenha tido circulação internacional que justificasse tal impacto. O emprego do alumínio, assumido como o material da modernidade do século XX, conduz as estruturas de Ascânio às teorias de Buckminster Fuller e à obra construída de Mies van der Rohe. Pequenos gestos pouco racionalistas de amarrar perfis de alumínio com arame evocam o modo de montar as estruturas de ferro do cimento armado - uma tecnologia decisiva para propiciar determinadas audácias da arquitetura moderna brasileira. Talvez a pregnância dessa densa e elegante ativação do inconsciente arquitetônico na obra de Ascânio justifique, mais enfaticamente, que um arquiteto com o renome de Norman Foster tenha adquirido o relevo Quadrados 19 (1968-2006) do brasileiro para sua coleção privada. Esse atravessamento do pensamento espacial arquitetônico na escultura - além do fato de pertencerem à geração MAM e serem amigos íntimos de Lygia Pape - é uma das razões da afinidade da crítica de Lauro Cavalcanti com a produção de Ascânio.
Um livro marcou uma diferença para Ascânio e definiu o rumo de sua obra: Candilis, Josic, Woods: una década de arquitectura y urbanismo.20 O texto sobre os três arquitetos urbanistas europeus foi o mais radical estímulo para Ascânio pensar a relação escultura e arquitetura. Durante meses ele “namorou” o livro de Jürgen Joedicke, folheando-o na banca do livreiro da FAU; até que pôde comprá-lo em dezembro de 1968, pensando em sua escultura e não na arquitetura. A partir das imagens de plantas baixas, plantas de elevação, maquetes e fotografias de edifícios construídos apresentadas no livro, Ascânio passou a pensar alguns desenhos e esculturas. O contato gráfico com a produção urbanística de Candilis, Josic e Woods levou o escultor a compreender a dimensão espacial da tridimensionalidade neoconcreta, e a invenção de sua escultura passou definitivamente ao processo de metabolização de ideias arquitetônicas. A escultura de Ascânio, quando se pensa em certo viés social da arquitetura, está relacionada àquele “desamparo essencial” respondido por arquitetos de seu interesse, como Affonso Eduardo Reidy e Carlos Nelson Ferreira dos Santos.21 Em razão da estética e das soluções de engenharia que adotou no projeto do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Reidy - e não o Oscar Niemeyer da Pampulha e de Brasília - foi o arquiteto mais discutido entre os artistas plásticos cariocas da geração de Ascânio. Não só a escada do MAM subjaz à harmonia da escultura de Ascânio e a seu modo de tensionar o barroco e o neoclássico, como a forma de alguns de seus projetos de interesse social também foi conscientemente absorvida por Ascânio: o Albergue da Boa Vontade, projeto que cruza a Bauhaus e o art déco, e o Conjunto Habitacional do Pedregulho, ambos edificados no Rio de Janeiro.
Na FAU, Ascânio foi aluno de Mário Pedrosa, crítico que fincou as bases filosóficas do neoconcretismo e que melhor compreendeu o fenômeno da arquitetura moderna do Brasil. Além do mais, o olhar do estudante convergia para compreender melhor o corpus arquitetônico do neconcretismo com a arquitetura incidente sobre Lygia Pape (Livro da arquitetura), Lygia Clark (Construa você mesmo o seu espaço de viver, A casa do poeta e Abrigo poético), Franz Weissmann (Torre e Ponte) e Hélio Oiticica (Núcleos e Projeto cães de caça). Ferreira Gullar viu “o desamparo essencial” na obra de Amílcar de Castro, de corte e dobra do plano em aço, pois trata-se da “condição da experiência estética. Para o artista e para o espectador”.22 Tais fatos indicam a fenomenologia de Ascânio. Em 1983, ele e Ronaldo do Rego Macedo promoveram a mostra O olho do guará, de Pape, no Centro Empresarial Rio. Naquela altura, Pape já ia avançada na discussão da inteligência construtiva nas favelas, que usava como espaço de aula para suas classes de arquitetura na Universidade de Santa Úrsula. A afinidade entre Pape e Ascânio, que emergirá ao longo do ensaio, estava consolidada também em torno da dimensão social da arquitetura num país como o Brasil.
O desamparo do ser clama por abrigo, função primordial da arquitetura da qual a escultura de Ascânio, por sua imbricação com o urbanismo de ação social, nunca se desprega. A linguagem, em visão heideggeriana, é o abrigo do ser. Por isso, na perspectiva do espaço social de inserção da arquitetura, a obra de Ascânio frequentemente privilegiou a dimensão dialética da ideia de composição, que ele aprofundou ao tomar contato, e comover-se, com trabalhos no campo da urbanização do Rio de Janeiro para os quais foi levado por Carlos Nelson Ferreira dos Santos. Esse surpreendente sentido de responsabilidade social da escultura, que advém das práticas de arquitetura de interesse social de Reidy e Carlos Nelson, aproxima-se do conceito de “arquitetônica” em Bakhtin. Para Bakhtin, a ideia de responsabilidade é o que trama as relações entre arte e vida,23 posição muito cara ao neoconcretismo e à Geração MAM e à qual se justapõe a escultura-arquitetura de Ascânio - a forma escultórica não se desprega da imaginação arquitetônica e o objeto estético surge nesse processo. As categorias arquitetônicas constituídas no corpus coeso de Ascânio vivem em diálogo mútuo, pois um Livro-arquitetura não se aparta de obras tão díspares como os Flexos e os Fitangulares. Toda sua obra é atravessada por um momento arquitetônico.
Por mais de quatro décadas, desde os primórdios de seus estudos de arte em 1963, Ascânio MMM manteve uma produção consistente. Seu olhar se definiu por uma lógica arquitetônico-construtiva própria e que se lapidaria coerentemente como um cristal. O desafio deste texto seria então compreender o modo como Ascânio é o lapidador do cristal. A sua produção ainda apresenta problemas de recepção e entendimento, mas isso não difere muito do que ocorre com a arte brasileira em temos gerais.
A imagem do cristal para referir a obra de Ascânio tem origem na maneira com que a forma racional pura na arte foi descrita por Georges Vantongerloo, do grupo De Stijl. Ao comentar a escultura topológica Fita de Moebius, de Max Bill, Vantongerloo a definiu como um “puro cristal”, mais que escultura.24 Esse modo de ver a arte como construção sob um regime de razão pura da forma foi estritamente reiterado por Waldemar Cordeiro ao afirmar que “o conteúdo da arte é um cristal. ‘Corpus solidum’, real e visível”.25 Predominam a transparência e a estrutura de planos, como os Bichos de Lygia Clark ou os Objetos espaciais de Hélio Oiticica. Essa lógica do cristalino na forma prevaleceu ao longo da maior parte da trajetória de Ascânio MMM, sofrendo uma deliberada pane e um embate em sua produção mais recente conforme o modo como sua poética conduz a lógica. A obra coerente de Ascânio provou ser cristal que não se arranha e muito menos admite trincar-se.
Notas
1 BACHELARD, Gaston. “Os dilemas da filosofia geométrica”. In: O novo espírito científico. Trad. Maurício José Marchevsky. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1968, p. 30 e 34.
2 Entrevista por e-mail a José Belo. Fão, Novo Fangueiro, 14 de dezembro de 2008.
3 E-mail do artista ao autor em 13 de outubro de 2009.
4 MONTEIRO, Ana Maria Ferreira da Costa. Professores de história: entre saberes e práticas.
Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2007.
5 BITTENCOURT, Circe Fernandes. Resenha, 2007. Disponível em: http://www.educacao.ufrj.br/artigos/n4/numero4-resenha.pdf. Acesso em: 25 de setembro de 2011.
A resenhista é professora de Pós-graduação da Faculdade de Educação da USP e do Programa de Pós-graduação Educação: História, Política, Sociedade da PUC/SP.
6 Foi o que aconteceu com certos textos sobre sua obra no livro Ascânio MMM. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2005.
7 Por esse motivo, o artista foi incluído na mostra Poética da Percepção: Questões da Fenomenologia na Arte Brasileira. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2008.
8 Este ensaio, no entanto, não discutirá os projetos arquitetônicos de Ascânio.
9 E-mail do artista ao autor em 26 de julho de 2010.
10 Essa denominação foi tomada emprestada da exposição e catálogo Projeto construtivo brasileiro na arte
(1950-1962), de Aracy Amaral (coord.).Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna; e São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977.
11 Lauro Cavalcanti, “Ascânio MMM: a construção da escultura”. In: Paulo Sérgio Duarte et alii. Ascânio MMM. Rio de Janeiro, Andrea Jakobsson Estúdio, 2005, p. 86.
12 Sobre o tema, ver o catálogo das exposições Le relief, em 1960 e 1962, na galeria XXe Siècle, em Paris.
13 BARATA, Mário. “Uma introdução à escultura moderna no Brasil.” I Exposição de escultura ao ar livre Sesc. Rio de Janeiro, Sesc Tijuca, 1977, p. 11. Barata está tocado pelo livro Vida das formas, de Henri Focillon.
14 In: Aracy Amaral (coord.). Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962). Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna, e São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1977.
15 BELLUZZO, Ana Maria. “Ruptura e arte concreta”. In: Aracy Amaral (org.). Arte construtiva no Brasil − Coleção Adolpho Leirner. São Paulo, Museu de Arte Moderna, 1998, p. 116.
16 BILL, Max. “The mathematical approach in contemporary art” [1949]. In: Tomás Maldonado. Max Bill. Buenos Aires, Nueva Visión, 1955, p. 37.
17 Art Concret, no 1, Paris, 1930.
18 BRUNSCHVIGG, L. Les étapes de la philosophie mathématique. Paris: A. Blanchard, 1993.
19 BADIOU, Alain. Number and Numbers (1990). Trad. Robin Mackay. Cambridge: Polity, 2009, p. 13.
20 JOEDICKE, Jürgen. Candilis, Josic, Woods: una década de arquitectura y urbanismo. Trad. Juan-Eduardo Cirlot. Barcelona, Editorial Gili, 1968.
21 Arquiteto e antropólogo, autor de livros como A cidade como jogo de cartas (1988) e Quando a rua vira casa (1981), este com outros autores.
22 “Arte neoconcreta: uma contribuição brasileira”. In: Aracy Amaral (coord.). Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962). Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna, e São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1977, p. 127.
23 BAKHTIN, Mikhail. “Arte e responsabilidade” (1919). In: Mikhail Bakhtin, Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 33-34
24 Cf. George Rickey. Constructivism, origins and evolution. New York, George Braziller, 1967, p. 146.
25 “O objeto”. Revista de Arquitetura e Decoração. São Paulo, dezembro de 1956.